Vai e vem. O passo
deixa no soalho,
menos que um traço,
um fio escasso
de ócio e borralho.
Clara é a pupila
onde não chove
e que, tranqüila,
no ermo cintila,
mas não se move
A pose é exata
a de uma esfinge
da cauda à pata,
nada o arrebata
ou mesmo o atinge.
Aguça o dente,
as unhas lima:
brinca, pressente
‑ e, de repente,
o pulo em cima.
A voz é como
sussurro de onda;
infla-lhe o pomo,
túmido gomo
que se arredonda.
Lúdico e astuto,
eis sua sorte:
alheio a tudo,
ilha sem susto
o tempo e a morte.
O Gato - Ivan Junqueira
terça-feira, 3 de junho de 2008
O Gato
sábado, 17 de maio de 2008
sábado, 1 de dezembro de 2007
Devia morrer-se de outra maneira...
Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de Outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...
Na morte de Manuela Porto - José Gomes Ferreira
quinta-feira, 1 de novembro de 2007
The marvels of daily life...
The marvels of daily life are exciting; no movie director can arrange the unexpected that you find in the street.
Robert Doisneau
quarta-feira, 10 de outubro de 2007
Da minha aldeia...
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Fernando Pessoa
domingo, 23 de setembro de 2007
Das pedras
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.
Das Pedras - Cora Coralina
terça-feira, 18 de setembro de 2007
Tempus Fugit
Saudade duma infância tão distante,
Dum mundo que o destino já levou,
Aurora que recordo a cada instante
No poente que o Tempo me deixou.
Outrora a vida era um jardim fragante,
Mas o vento logo o despedaçou,
Tropel de calendários, delirante,
Relâmpago instantâneo que voou.
Meus tesouros perdi-los p'lo caminho,
Só me resta a cabeça cor de linho,
Inverno de quem sofre e de quem ama.
Quem és tu, saudade dolorida,
És o eco que repete o som da vida,
Ou és a voz da morte que nos chama?
Tempus Fugit - Ramiro Dutra
terça-feira, 10 de julho de 2007
Um dia
Um dia
Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.
Sophia de Mello Breyner Andersen
quinta-feira, 5 de julho de 2007
Dizem que as plantas não falam
Dizem que as plantas não falam
Dizem que as plantas não falam, nem as fontes, nem os pássaros,
nem a onda com seus rumores, nem com seu brilho os astros.
Dizem; mas não é verdade, pois que sempre, quando eu passo,
de mim murmuram e exclamam:
- Lá vai a louca, sonhando
com a eterna primavera da existência e dos campos,
e já bem cedo, não tarda, terá os cabelos brancos,
e vê tremendo, aterrada, cobrir a geada o prado.
-Há brancas no seu cabelo, caiu nos prados a geada;
mas continua sonhando, pobre, incurável sonâmbula,
com a eterna primavera desta vida que se apaga,
com a perene frescura das campinas e das almas,
mesmo quando aquelas secam e quando estas se abrasam.
Astros e fontes e flores! não murmureis de que eu sonhe.
Sem sonhos, como admirar-vos? como sem eles viver?
Rosalia de Castro (1837- 1885)
quarta-feira, 27 de junho de 2007
Força do hábito
"Um dia o meu cavalo voltará sozinho e, assumindo sem querer a minha própria imagem e semelhança, virá ler, naquele café de sempre, nosso jornal de cada dia...
"Força do Hábito" - Mario Quintana
quinta-feira, 21 de junho de 2007
O amor é grande...
O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.
Carlos Drummond de Andrade
sexta-feira, 8 de junho de 2007
When words become unclear...
When words become unclear, I shall focus with photographs. When images become inadequate, I shall be content with silence.
Ansel Adams
quarta-feira, 6 de junho de 2007
uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas
In our African language we say 'a person is a person through other persons.' I would not know how to be a human being at all except I learned this from other human beings. We are made for a delicate network of relationships, of interdependence. We are meant to complement each other. All kinds of things go horribly wrong when we break that fundamental law of our being. Not even the most powerful nation can be completely self-sufficient.
Em nossa lingua Africana dizemos “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Eu não saberia absolutamente como ser um ser humano, a não ser aprendendo isso através de outros seres humanos. Somos formados para uma delicada rede de relações, de independência. Devemos nos complementar uns aos outros. Todo tipo de coisas dão horrivelmente errado quando quebramos essa lei fundamental de nosso ser. Nem mesmo a mais poderosa nação pode ser completamente auto-suficiente.
Desmond Tutu
terça-feira, 5 de junho de 2007
A boat on the sea...
A BOAT on the sea, my boat,
Eager and frail!
Sweet skies, smile as you look
On that fairy sail.
Waves, great waves, many years
You have worked your will.
Just while she passes through,
Kind waves, be still.
Winds—and I may not ask
That you never blow,
But spare her the moaning note
That the old boats know.
Ethel Turner
Imagination...
Imagination was given to man to compensate him for what he is not; a sense of humor to console him for what he is.
Francis Bacon
Olhando o mar...
Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?
Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, 'star em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há pouco ou não há o mesmo resta.
Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.
Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?
Fernando Pessoa
quarta-feira, 30 de maio de 2007
Eu pescador...
EU PESCADOR
Eu pescador que pesco por um instinto antigo
e procuro não sei se o peixe se o desconhecido
e lanço e recolho a linha e tantas vezes digo
sem o saber o nome proibido.
Eu de cana em punho escrevo o inesperado
e leio na corrente o poema de Heraclito
ou talvez o segredo irrevelado
que nunca em nenhum livro será escrito.
Eu pescador que tantas vezes faço
a mim mesmo a pergunta de Elsenor
e quais águas que passam sei que passo
sem saber resposta. Eu pescador.
Ou pecador que junto ao mar me purifico
lançando e recolhendo a linha e olhando alerta
o infinito e o finito e tantas vezes fico
como o último homem na praia deserta.
(…)
Oitavo Poema do Pescador In "Senhora das Tempestades" de Manuel Alegre
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Retrato - Cecília Meireles
