quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Primeiro


Hundertwasser_bottles' wall, originally uploaded by eloisavh.


Primeiro

Uma tarde,
o Tóino
chegou ao largo
com um vidro extraordinário.
Segurava-se entre o polegar e o indicador,
virado para o sol,
chispavam as sete cores do arco-íris!
E nós,
em volta,
esquecidos do jogo do pião!...

Manuel da Fonseca

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O primeiro homem


Reflexos de..., originally uploaded by Joe Taruga.



Era como uma árvore da terra nascida
Confundindo com o ardor da terra a sua vida,
E no vasto cantar das marés cheias
Continuava o bater das suas veias.

Criados à medida dos elementos
A alma e os sentimentos
Em si não eram tormentos
Mas graves, grandes, vagos,
Lagos
Reflectindo o mundo,
E o eco sem fundo
Da ascensão da terra nos espaços
Eram os impulsos do seu peito
Florindo num ritmo perfeito
Nos gestos dos seus braços.


O primeiro homem - Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Of course, there will always be...


Technique or inspiration?, originally uploaded by Rosario_Marques.



Of course, there will always be those who look only at technique, who ask 'how', while others of a more curious nature will ask 'why'. Personally, I have always preferred inspiration to information.


Man Ray

Discovery


gosts on the beach, originally uploaded by Kika BR.


(...)
The sea turned suddenly very young and very old
Revealing beaches
And a people
Of just-created men still the colour of clay
Still naked still in awe


Discovery - Sophia de Mello Breyner Andresen

_______________________________________________

(...)
O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados

Descobrimento - Sophia de Mello Breyner Andresen

To make a prairie...


Abelha, originally uploaded by Ana Santander.



To make a prairie it takes a clover and one bee, One clover, and a bee, And revery. The revery alone will do, If bees are few.


Emily Dickinson

Poema melancólico a não sei que mulher


Mulheres à beira-mar..., originally uploaded by Joe Taruga.

"Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão..."


POEMA MELANCÓLICO A NÃO SEI QUE MULHER - Miguel Torga (1907-1996)

O Fotógrafo





Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando um bêbado.
Fotografei o carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski -seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.


O Fotógrafo - Manoel de Barros

Sonnet LXV


Flor da "Pedra", originally uploaded by Rui Farinha.

SONNET LXV

Since brass, nor stone, nor earth, nor boundless sea,
But sad mortality o'er-sways their power,
How with this rage shall beauty hold a plea,
Whose action is no stronger than a flower?
O, how shall summer's honey breath hold out
Against the wreckful siege of battering days,
When rocks impregnable are not so stout,
Nor gates of steel so strong, but Time decays?
O fearful meditation! where, alack,
Shall Time's best jewel from Time's chest lie hid?
Or what strong hand can hold his swift foot back?
Or who his spoil of beauty can forbid?
O, none, unless this miracle have might,
That in black ink my love may still shine bright.


WILLIAM SHAKESPEARE

Sou um guardador de rebanhos


Quando estou só reconheço...., originally uploaded by ~~henry~~.


Sou um guardador de rebanhos

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei da verdade e sou feliz.


Alberto Caeiro

domingo, 18 de novembro de 2007

Noite do meu inverno


A rustle of delight ..., originally uploaded by Azorina.




E se o vento varrer as folhas secas sem deixar nenhuma?
Este Outono ela não guardará folhas dentro dos livros
E ele não escreverá mais poemas a falar da sua morte
E ambos serão obrigados a não sair do Verão, mesmo
no Inverno, à chuva, atrás dos vidros.




António Barahona - Noite do Meu Inverno

E o mundo aconteceu...


Um lugar no Paraiso ..., originally uploaded by Azorina.


Além do promontório, o mar aberto,
enigma da distância mais remota!
Baloiça a barca o seu destino incerto,
as velas sonham-se asas de gaivota...

Experto, o velho avisa, nos areais...
Viúvas de amanhã aflitas choram...
No céu, sucedem-se astros os sinais...
Os medos por haver já não demoram...

Trombetas anunciam a largada!
As tágides soluçam a saudade
nos versos que Camões à pátria deu...

Ao leme vai a mão determinada,
ousando ser além posteridade...
e, pouco a pouco, o mundo aconteceu.


Do Poeta Português,
José-Augusto de Carvalho(E O MUNDO ACONTECEU ... 30 de Outubro de 2005)

All you need...


Avião II, originally uploaded by nuno_ferreira.

"'All you need,' he once said as a noted photographer orated on the psychology behind one of his pictures, 'is a little bit of luck and enough muscle to click the shutter.' He might have added: a good eye, a heart and a knowing nose for news. For all of these were obvious in his work."

(Judith Friedberg on David Seymour in "Photographic")

Tocando em frente



Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Hoje me sinto mais forte,
Mais feliz, quem sabe,
Eu só levo a certeza
De que muito pouco sei,
Ou nada sei

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder seguir
É preciso chuva para florir

Sinto que seguir a vida
Seja simplesmente
Conhecer a marcha
E ir tocando em frente

Como um velho boiadeiro
Levando a boiada
Eu vou tocando os dias
Pela longa estrada, eu vou
Estrada eu sou

Cada um de nós compõe
A sua própria história
E cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
De ser feliz

Todo mundo ama um dia,
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora

TOCANDO EM FRENTE - Renato Teixeira

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Ó castanheiros...


Castanheiro, originally uploaded by DjSousa.


Ó castanheiros de folhas de ouro,
Carregados de ouriços que são ninhos
Onde as castanhas dormem como noivos!

Troncos abertos,

Casas abertas,
Ao vosso abrigo
Dormem os pobres,
Pegam no sono,
Passam as noites
Quando cai neve!

Peitos vazios,
Escancarados,
Sem nada dentro,
Nem coração!
Dais lume, calor
E dais sustento para a mesa,
E dais o mais que eu não sei!...

Ó castanheiros de folhas de ouro,
Apenas sou vosso irmão
Em que a terra vos criou
E criou-me a mim também;
Em que vós ergueis os braços
Suplicantes para os céus
E eu também levanto os meus...
(...)

Branquinho da Fonseca

Um Sossegado Silêncio


No Parque, originally uploaded by DjSousa.





Novembro apagou nas buganvílias
seus nomes brancos, roxos, escarlates.

É mais difícil regressar a casa:
o caminho disfarçou, emudeceu
seu rosto nos muros e nas grades.

- Por onde seguiremos
sem que o outono espesso nos trespasse?


José Bento


Um Sossegado Silêncio - Porto, Edições Asa, 2002

Ilha


If I lived here..., originally uploaded by Joe Taruga.


Ilha

Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias


David Mourão-Ferreira

He who loves...


Learning to Fly... (II), originally uploaded by Joe Taruga.



He who loves, flies, runs, and rejoices; he is free and nothing holds him back.

Henri Matisse

Tenho pena...


Pedinte, originally uploaded by Ana Santander.



Tenho pena de tudo quanto lida
Neste mundo,de tudo quanto sente,
Daquele a quem mentiram,de quem mente,
Dos que andam pés descalços pela vida,

Da rocha altiva sobre o monte erguida,
Olhando os céus ignotos frente a frente,
Dos que não são iguais à outra gente,
E dos que se ensanguentam na subida!

Tenho pena de mim...pena de ti...
De não beijar o riso duma estrela...
Pena dessa má hora em que nasci...

De não ter asas para ir ver o céu...
De não ser Esta ...a Outra...e mais Aquela...
De ter vivido e não ter sido Eu...


Florbela Espanca

sábado, 10 de novembro de 2007

O espírito

"Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais, alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto."


O Espírito - Natália Correia

Além da terra, além do céu



Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU -
Carlos Drummond de Andrade

Nostalgia


window of hope, originally uploaded by ~~henry~~.

"Nostalgia"

Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que plas aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-se esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!

Ó meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

Florbela Espanca

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Paisagem


No teu ar..., originally uploaded by Joe Taruga.



Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.

Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te contemplar.

Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno desta praia.

E desejei: « Que nada me distraia
dos horizontes que tu olhas!»

Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.

(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)

Paisagem - David Mourão-Ferreira

Um homem com uma dor


Rostos de Portugal 007, originally uploaded by Rui Farinha.



Um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra


Um homem com uma dor - Paulo Leminski

Dogs vs.Cats


Shiva e Júlio, originally uploaded by Maria Rego.


Dogs vs.Cats

A dog can be cute,
big or maybe minute
could have hair
long, curly or short
also black eye's with a
Rotweiler Stare

Kittens are cute
in a black & white suit
Cats can be wild or crazy
but they always seem lazy
sleep most of the day,
away

Both will be your friend
Dogs need a minder
Cats need a feeder
together they will
send you a reminder,
that, they are hungry!
or angry

Dogs vs. Cats
I think it's about even
and this you can believe-in
they both have claws
and jaws
and most times a tail,
that wags a Tale

David Darbyshire

terça-feira, 6 de novembro de 2007

As cidades e o Nome


Ponte Arrábida, originally uploaded by nuno_ferreira.


As cidades e o Nome

"Irene é a cidade que se vê na extremidade do planalto na hora em que as suas luzes se acendem e permitem distinguir no horizonte, quando o ar está límpido, o núcleo do povoado: os lugares onde há maior concentração de janelas, onde a cidade rareia em vielas mal iluminadas, onde se acumulam sombras de jardins, onde se erguem torres com fogos de artifício; e, se o entardecer é brumoso, uma claridade anuviada infla-se como uma esponja aos pés da enseada."

Italo Calvino, "As Cidades Invisíveis"

Pastelaria


Alegria / Joy, originally uploaded by Rui Farinha.





Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra


PASTELARIA - Mário Cesariny

Lá fora onde árvores são...


As três Marias, originally uploaded by DjSousa.

"Lá fora onde árvores são"


Lá fora onde árvores são
O que se mexe a parar
Não vejo nada senão,
Depois das árvores, o mar.
É azul intensamente,
Salpicado de luzir,
E tem na onda indolente
Um suspirar de dormir.

Mas nem durmo eu nem o mar,
Ambos nós, no dia brando,
E ele sossega a avançar
E eu não penso e estou pensando.




Poesias Inéditas - Fernando Pessoa

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Amavisse


Frankfurt, originally uploaded by eloisavh.


Amavisse
(II)

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Hilda Hilst

Onde me levas, rio que cantei


Onde me levas, rio que cantei,

Onde me levas, rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me leva?, que me custa tanto.

Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa.
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.

Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos.
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.

Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra fase na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

The marvels of daily life...


Santiago de Compostela, originally uploaded by Graça Vargas.



The marvels of daily life are exciting; no movie director can arrange the unexpected that you find in the street.


Robert Doisneau

The beach waits...


Paquetá, originally uploaded by Pinkuiro.


Here, in front of the summer hotel
the beach waits like an altar.

Anne Sexton

Antes que elas cresçam

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.

Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu?

...

Affonso Romano de Sant'Anna - Antes que elas cresçam

Nem sempre o corpo se parece...


Window Sill ..., originally uploaded by Azorina.

"Nem sempre o corpo se parece com
um bosque, nem sempre o sol
atravessa o vidro,
ou um melro cante na neve.
Há um modo de olhar vindo
do deserto,
mirrado sopro de folhas,
de lábios, digo."


Nem sempre o corpo se parece - Eugénio de Andrade
In "O peso da sombra"

Olhando o mar, sonho sem ter de quê


Lá longe..., originally uploaded by Azorina.



Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, 'star em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há pouco ou não há o mesmo resta.

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?

Olhando o mar, sonho sem ter de quê - Fernando Pessoa

A Solidão e Sua Porta


Olhar / looking, originally uploaded by nuno_ferreira.



Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)

Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

Arquiteta na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.

A Solidão e Sua Porta - Carlos Pena Filho