SE EU PUDESSE trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz,
É preciso ser de vez quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...
Alberto Caeiro
sexta-feira, 30 de maio de 2008
Se eu pudesse...
Vôo
Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Viam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.
Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em redor de nós as
palavras voam.
E às vezes pousam.
Vôo - Cecília Meireles
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segunda-feira, 26 de maio de 2008
The camera...
'The camera makes everyone a tourist in other people's reality, and eventually in one's own.'
Susan Sontag
Arte-final
Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
quem toma uma por outra
confunde e mente.
Arte-final
(Affonso Romano de Sant'Anna)
domingo, 18 de maio de 2008
No silêncio dos olhos
No silêncio dos olhos
Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?
José Saramago, in Os Poemas Possíveis
sábado, 17 de maio de 2008
Os versos que te fiz
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
Os versos que te fiz - Florbela Espanca
Os Cisnes
A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós constantemente
Um lago azul, sem ondas nem espumas.
Bem cedo quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vagamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.
Um dia um cisne morrerá, por certo...
Quando chegar esse momento incerto,
No lago onde talvez a água se tisne,
Que o cisne vivo cheio de saudade
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado d'outro cisne.
"Os Cisnes"
Júlio Mário Salusse
Cantares do Sem Nome e de Partidas
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
Cantares do Sem Nome e de Partidas
Hilda Hilst
segunda-feira, 5 de maio de 2008
Um amigo...
“Não há prazer comparável ao de encontrar um velho amigo, a não ser o de fazer um novo.”
Rudyard Kipling
O sorriso
Creio que foi o sorriso,
O sorriso foi quem abriu a
porta.
Era um sorriso com
muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa,
ficar
nu dentro daquele
sorriso.
Correr, navegar, morrer
naquele sorriso.
O sorriso
Eugénio de Andrade in «O Outro Nome da Terra»
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Long Sight In Age
Long Sight In Age
They say eyes clear with age,
As dew clarifies air
To sharpen evenings,
As if time put an edge
Round the last shape of things
To show them there;
The many-levelled trees,
The long soft tides of grass
Wrinkling away the gold
Wind-ridden waves- all these,
They say, come back to focus
As we grow old.
Philip Larkin
Eles não têm asas...
Que difícil que é a vida dos homens, pensou ela. Eles não têm asas para voar por cima das coisas más.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in A Fada Oriana
Prece
Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe por onde tu passas
Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
(Prece – Sophia de Mello Breyner Andresen)