quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Não basta abrir a janela...


Janela para o mundo., originally uploaded by janicafranco.


Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Um cais chamado saudade

havia um porto
antes
ao alcance da vista

um ponto
onde as naus
suspendiam viagem

as velas arfavam
desenfunadas
e sonhavam

a lua sobre o mar
era um sabre
aparando a água

havia um porto
antes
ao alcance do corpo

(um ponto
onde hoje atraco a saudade
e mais nada)

"Um cais chamado saudade" - Sônia Régis

domingo, 5 de agosto de 2007

Uma vez...


Respect, originally uploaded by _Margarida_.

Uma vez, enchi a minha mão de bruma.
Quando a abri, a bruma era uma larva.
Voltei a fechar a mão, e então era um pássaro.
E fechei a abri novamente a mão,
e na sua palma encontrava-se um homem
de rosto triste, virado para o céu.
Mais uma vez fechei a mão,
e quando a abri já só havia bruma.
Mas escutei uma canção de uma doçura extrema.


Kahlil Gibran

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Quando


Jarro, originally uploaded by DjSousa.


Quando


Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Ilha do Sul


... a Sand Dollar, originally uploaded by ana_maria_.


Ilha do Sul

É a ilha do Sul. É.
Longe, num mar desconhecido, é um ponto no horizonte.
É uma malha de neblina.

Entre o alvor e a escuridão
Emerge das águas brancas
e dura infinitamente.
E num instante vai ao fundo.

E o mar das delícias
é pesado e ébrio.
E o sal fecha a ferida
e o presságio que nem existe.

Que no fundo obscuro
há apenas conchas cobertas de areia
e ramos de oliveira amarga
em embalar do musgo.

E a água abre-se
e a estrela forte surge
e vem o novo navio
e a ilha do Sul existe.

Kajetan Kovic (esloveno)

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Oitavo poema do pescador


Eu pescador que pesco por um instinto antigo
e procuro não sei se o peixe se o desconhecido
e lanço e recolho a linha e tantas vezes digo
sem o saber o nome proibido.
(…)
Ou pecador que junto ao mar me purifico
lançando e recolhendo a linha e olhando alerta
o infinito e o finito e tantas vezes fico
como o último homem na praia deserta.
(…)
Eu pescador que trago em mim as tábuas
da lua e das marés e o último rumor
de um nome que alguém escreve sobre as águas
e nunca se repete. Eu pescador.

Manuel Alegre – Oitavo poema do pescador

Poemas aos Homens do nosso tempo


Princípio, originally uploaded by meira888.


Poemas aos Homens do nosso tempo

Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.

Hilda Hilst

Reinvenção


Lua, originally uploaded by DjSousa.


Reinvenção

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas. . .
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... – mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcança...
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na trevas
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meireles in Flor de poemas